COLUNA

Pedro Abramovay

O Rio de Janeiro precisa urgentemente de lei e ordem

O Brasil precisa de respeito à Constituição e de uma visão radical: ninguém está acima da lei

11 de Novembro de 2025

A maior chacina da história do Brasil escancarou o que temos de mais perverso: a indiferença diante da morte de centenas de pessoas e a paralisia das autoridades frente ao terror imposto por organizações criminosas nas favelas. Não podemos normalizar filas de cadáveres nem o choro das mães. Não podemos aceitar como rotina a ocupação armada de territórios inteiros da cidade.

Diante dessa tragédia, surgiu uma polarização artificial: como se houvesse um dilema entre respeitar a Constituição e a vida humana ou enfrentar a violência e a ocupação territorial no Rio. Essa oposição é ilusória. Mortes violentas e desrespeito à lei por parte da polícia não reduzem o poder das facções nem retomam territórios. O argumento que culpa os “direitos humanos” pela incapacidade do Estado parte de uma fantasia: a de que o Rio seria um paraíso do respeito à dignidade humana. A realidade é o oposto. Com índices altíssimos de mortes provocadas pela polícia, baixíssimo nível de investigação e o maior número de policiais mortos no país, qualquer analista sério sabe que a política atual — que dá carta branca para matar — é um fracasso anunciado.

Essa lógica não funciona porque autorizar a polícia a matar qualquer pessoa na favela não poupa ninguém. O discurso do deputado e pastor Otoni de Paula (PMDB-RJ) é revelador: ao denunciar que quatro fiéis de sua igreja foram assassinados, ele expôs o racismo estrutural que permeia essas operações. “Preto correndo em dia de operação na favela é bandido”, disse, antes de alertar para o pânico de ver seu próprio filho — negro — ser morto antes que descubram que é filho de um deputado. Dias sem aula, sem posto de saúde e, sobretudo, o medo constante de perder filhos em operações policiais fazem parte do cotidiano das favelas. Essa realidade, normalizada pela imprensa e pelas autoridades, revolta quem vive nela.

Nada é mais nocivo para uma política séria de segurança do que uma polícia acima da lei. É a lei, e não a farda, que diferencia polícia de bandido

Mesmo para quem ignora o sofrimento dos moradores, é preciso deixar claro: essas políticas nunca reduziram — e nem pretendem reduzir — o controle territorial das facções. O Comando Vermelho continua dominando o Alemão e a Penha. As chacinas não enfraquecem essas organizações, não diminuem a oferta de drogas, não reduzem a violência. A operação mais sangrenta da história do Brasil não prendeu o criminoso apontado como alvo principal nem retomou o controle da região.

Dois pilares sustentam essa política fracassada: a autorização para que a polícia mate sem ser investigada e o armamento da população. Nada é mais nocivo para uma política séria de segurança do que uma polícia acima da lei. É a lei — e não a farda — que diferencia polícia de bandido. Quando a sociedade concede carta branca para matar sem investigação, abre espaço para execuções, corrupção e alianças criminosas. Uma polícia que mata impunemente é o sonho de policiais corruptos: podem eliminar desafetos ou quem não paga propina sem medo de punição.

A segunda ilusão é o armamento da população. Nos últimos anos, especialmente após o governo Bolsonaro flexibilizar regras para compra de armas antes restritas a militares, vimos crescer a apreensão de fuzis no Rio e no Espírito Santo. Esse aumento não é coincidência: parte significativa desse arsenal que um dia foi legal acaba desviada para organizações criminosas.

A grande armadilha da segurança pública no Brasil é que o que dá voto não é reduzir a violência, mas alimentar o medo. Os homicídios caíram 33% entre 2017 e 2024 — são 17 mil mortes a menos por ano. Mas isso não trouxe sensação de segurança. Pelo contrário: a insegurança segue como principal preocupação dos brasileiros. Esse medo, agravado pelo controle territorial explícito no Rio e presente em outros estados, abre espaço para políticos que prometem “suspender a lei para enfrentar o crime”. O problema é que esses mesmos políticos se beneficiam da suspensão da lei para se aliar a policiais corruptos — e, às vezes, a criminosos — mantendo tudo como está.

Quando a sociedade concede carta branca para matar sem investigação, abre espaço para execuções, corrupção e alianças criminosas

O ciclo vicioso está claro. A população dá carta branca a políticos e policiais para descumprir a lei para enfrentar o crime. Os piores políticos e os piores policiais se aproveitam desse mandato e usam a impunidade para perpetuar a lógica de guerra do controle territorial, mas apresentam os cadáveres como prova de sucesso. As facções seguem controlando seus territórios, exercendo seu terror. São décadas de corrupção, bala e voto como política de segurança.

Há uma oportunidade interessante de enfrentar essa questão. A CPI do crime organizado que acaba de ser instalada no Senado Federal. A CPI tem dois caminhos a seguir. O da competição por quem defende penas mais duras ou o discurso mais sangrento; ou o de fazer o trabalho sério, que nunca foi feito, de investigação da relação entre crime e política no Rio de Janeiro. A CPI tem o poder e as condições políticas de romper com o acordo de impunidade que faz do Rio de Janeiro uma terra sei lei.

O Brasil, e especialmente o Rio, precisa de lei e ordem. Precisa de respeito à Constituição e de uma visão radical: ninguém está acima da lei. Nem o chefe do tráfico, nem o policial, nem o governador. Uma polícia com carta branca para matar é também uma polícia com carta branca para se corromper. A impunidade é a mãe da corrupção. O Rio vive há anos com uma política de segurança fracassada, baseada em ignorar a lei para alimentar a guerra. Infelizmente, o fracasso parece ter subido à cabeça de certos governantes.

Pedro Abramovay é advogado, doutor em Ciência Política pelo Iespe/Uerj, ex-secretário Nacional de Justiça e atualmente vice-presidente de Programas da Open Society Foundations

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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